História / Profª Marlene.
Indios Anawene-nawê.
Breve relato Os Enawenê Nawê falam uma língua da família Aruák, vivem
em uma única grande aldeia próxima ao rio Iquê, afluente do Juruena,
no noroeste do Mato Grosso e ocupam uma Terra de 742.088 ha que
corresponde a uma parte do seu território tradicional. No passado,
guerrearam com os Rikbátsa, Cinta Larga e Nambiquara. Embora seus
vizinhos mais próximos na atualidade sejam os Mynky, os Nambiquara do
Campo e os Rikbátsa, povos que falam línguas distintas entre si, a
língua dos Enawenê Nawê é parecida com a língua falada pelos Pareci.
O primeiro contato oficial dos Enawenê Nawê com os brancos foi em
1974, com os jesuítas Vicente Cañas e Tomáz de Aquino Lisboa. Nessa
época, a Missão Anchieta estava revendo sua forma tradicional de
atrair e civilizar populações indígenas pela educação. A aproximação
com os Enawenê Nawê foi lenta e guiada por uma nova filosofia, que
buscava mantê-los isolados da sociedade nacional e concentrar as
atividades na convivência com um mínimo de interferência, no
atendimento à saúde e na proteção do território. As enfermeiras que
mais tarde vieram a trabalhar com os Enawenê Nawê, por exemplo,
moravam nas casas comunais e aprenderam a língua. Foram introduzidos
apenas alguns instrumentos de ferro: facão, machado e anzóis,
procurando reduzir ao máximo a dependência de bens industrializados.
Essa postura da Missão Anchieta produziu alguns resultados positivos.
Os Enawenê Nawê não foram vítimas das tradicionais epidemias que, na
maioria das vezes, assolam os grupos indígenas logo após o contato e
produzem efeitos deletérios. Ao contrário, houve crescimento
demográfico e os Enawenê Nawê mantiveram intacto seu modo de vida
tradicional e seus belos rituais. Até hoje não falam o português e
somam uma população aproximada de 250 índios. Inicialmente os Enawenê
Nawê ficaram conhecidos como Salumã, nome pelo qual os Pareci e outros
grupos indígenas da região os denominavam. Só em 1983 é que o
missionário Vicente Cañas descobriu a verdadeira auto-denominação do
grupo.
A aldeia, as casas
As canoas dos Enawenê Nawê ficam ancoradas no rio Iquê, a
aproximadamente seis quilômetros da aldeia circular formada por dez
grandes casas retangulares e uma casa circular, mais ou menos no
centro, onde ficam guardadas as flautas. No pátio central são
realizados os rituais e as partidas de futebol de cabeça, esporte
tradicional dos Enawenê Nawê, cujas bolas são feitas de latéx extraído
das seringueiras. Apanham água, tomam banho e lavam suas panelas em
pequenos igarapés situados próximos à aldeia.
As casas são feitas de troncos de várias grossuras amarrados com cipós
e cobertas com palhas de buriti, com uma entrada de frente para o
pátio e outra nos fundos. No interior das casas há uma área de
circulação comum formada por um longo e largo corredor central que
liga a duas entradas. Aí estão dispostos grandes jiraus (espécie de
mesa alta feita de troncos finos espaçados entre si) sobre os quais se
colocam bolos assados de milho, massas de mandioca para secar e
outros.
Em cada casa moram diversas famílias ligadas entre si por relações de
parentesco. Cada família composta de pai, mãe e filhos tem seu próprio
fogo, suas redes próximas e um jirau aonde guardam os seus pertences.
Além dos casais mais velhos, divisórias de esteiras marcam o espaço
dos casais mais jovens. As filhas ficam perto dos pais e portanto são
os jovens esposos que vão para o outro lado da casa ou para outra
residência.
O interior das casas é muito agradável e cheio de atividades . Durante
o dia, quando está quente lá fora, as casas protegem do calor. À noite
as casas são iluminadas com tochas cheirosas de resina enrolada em
folhas de pacova e são acesos os fogos de cada uma das famílias. É uma
hora em que a família reunida aproveita para conversar e todos contam
o que aconteceu no dia.
O trabalho e os alimentos
Homens e mulheres fazem trabalhos diferentes. As mulheres cozinham os
alimentos, cuidam das crianças, tecem redes e pulseiras de algodão,
fabricam panelas de barro, pescam pequenos peixes nas lagoas, plantam,
buscam alimentos na roça e outros. Uma boa parte dos trabalhos
femininos é realizada dentro das casas. Os homens buscam lenha,
acompanham as mulheres nas roças, derrubam e queimam as roças, pescam
de diversas formas, buscam resinas, cogumelos, mel, frutas, cipó e
palha no mato, fazem canoas e muitas outras coisas.
As atividades econômicas dos Enawenê Nawê estão articuladas ao
calendário ritual. Isso porque eles acreditam que há um outro tipo de
vida após a morte. Então, quando alguém morre, a carne e os ossos
ficam para os Yakairiti (espíritos que habitam o patamar subterrâneo)
e a pulsação (impulso vital) e último sopro vão para o céu e se
transformam em Enore (espíritos que habitam o patamar celeste). Esses
espíritos interferem na vida dos humanos e para manter a harmonia do
mundo, a organização e as regras da sociedade, para que não faltem
alimentos, toda a sociedade estabelece uma relação de troca constante
com eles através da troca generalizada entre grupos rituais. Essa
relação se dá através de um ciclo anual de rituais.
As roças
Os produtos agrícolas, os peixes e os produtos de coleta são bens de
consumo e de troca. Assim os Enawenê Nawê organizam os trabalhos de
forma a produzir alimentos para simples consumo cotidiano e para serem
oferecidos e trocados durante os rituais.
Para organizarem suas atividades agrícolas, plantam tanto roças
familiares quanto roças coletivas, sendo que os produtos das roças
coletivas se destinam ao consumo durante os rituais. A mandioca,
ligada aos espíritos Yakairiti e o milho, ligado aos espíritos Enore,
são os dois principais produtos da roça. A roça coletiva de mandioca
se inicia em agosto, com o ritual Lerohi e vai terminar de ser
plantada no ano seguinte, durante o ritual do Yãkwa. Os trabalhos de
roça envolvem derrubada, queimada, limpeza e plantio. Durante o Yãkwa
os homens plantam as primeiras ramas durante à noite e fazem um
espécie de reza, além de derramar bebida de mandioca e peixe assado na
terra para a planta que eles chamam de mandioca mãe. Isso porque os
Enawenê Nawê acreditam que a primeira mandioca foi uma menina que
pediu à sua mãe que a enterrasse até o pescoço e ao seu pai que sempre
lhe trouxesse peixe. Dessa forma ela sempre produziria mandiocas que
sua mãe arrancava com carinho e comia. Até que um dia uma outra mulher
veio roubar as raízes e arrancou a planta com força. A menina chorou
muito, parou de falar e morreu . A partir daí as mandiocas não
nasceram mais sozinhas e os homens foram obrigados a plantá-las todos
os anos, com fazem até hoje, com cuidados especiais para dar tudo
certo, incluindo cantos e danças.
As roças de mandioca estão localizadas próximas a aldeia. Os Enawenê
Nawê cultivam a mandioca mansa e mais de dez variedades da mandioca
brava. Das mandiocas fazem diversos tipos de comidas como o beiju de
massa ralada e assada, uma bebida fermentada e bastante diluída que
consomem o dia inteiro no lugar da água, mingaus e sopas aos quais são
misturados outros ingredientes. A mandioca mansa é comida assada ou
cozida.
São plantadas roças familiares de milho nas matas de galeria que
margeiam os rios. O milho está relacionado aos espíritos do céu, os
Enore, e está ligado aos rituais Salumã e ao ritual das mulheres, o
Kateoku. Em geral essas roças exigem terras melhores localizadas longe
da aldeia e exigem a construção de casas temporárias para serem
manejadas. Os Enawenê Nawê cultivam tradicionalmente quatro variedades
de milho: uma vermelha, uma preta e duas amarelas, com as quais fazem
mingaus, bolos, refrescos fermentados, sopas misturadas com mandioca,
feijão fava e peixe. O milho novo é consumido na forma de espigas
assadas.
A pesca
O peixe é considerado um alimento nobre, fundamental para a realização
dos rituais e objeto de troca nas relações sociais e amorosas. Assim
como na agricultura, as atividades de pesca podem ser rituais (grandes
quantidades) ou não (grupos familiares) . Os Enawenê Nawê conhecem os
processos de reprodução e movimentação migratória dos peixes pelos
rios e com base nesse conhecimento organizam suas pescarias . Eles
usam várias técnicas e diferentes instrumentos: venenos vegetais
(cipós e cascas de árvore) que deixam o peixe atordoado, arco e
flecha, anzóis, armadilhas em forma de cone e barragens. Pescam em
rios, riachos e lagoas.
No final do período das chuvas, entre fevereiro e março, os homens
Enawenê Nawê se dividem em grupos e partem para diferentes rios para
realizar a maior de suas pescarias. A hora da descida é indicada pelas
chuvas e principalmente pelo aparecimento da flor de um pequeno capim
que nasce em manchinhas de cerrado próximas as matas-galeria . É a
pesca coletiva do ritual Yãkwa. Viajam em canoas grandes, antigamente
fabricadas de cascas de jatobá . Atualmente as canoas Enawenê Nawê são
feitas de madeiras de imburana, araputanga e outras madeiras de lei.
Permanecem dois meses nesses acampamentos. Só alguns homens ficam na
aldeia com as mulheres preparando o sal vegetal, limpando o pátio e os
caminhos.
Chegando aos acampamentos os homens dão início à construção de uma
barragem e começam a fabricar armadilhas. Alimentam-se basicamente de
mel , frutos de buriti e produtos de mandioca que trouxeram da aldeia.
Nessa época os cardumes estão migrando e os índios pescam e defumam
grandes quantidades de peixes que serão levados para a aldeia e
consumidos durante os quatro meses seguintes (período de cantos e
danças do ritual Yãkwa).
Além da pesca do Yãkwa, os índios realizam pescarias para os demais
rituais utilizando principalmente a técnica de colocação de venenos
vegetais nas lagoas. Também realizam pescarias familiares, não
rituais, utilizando-se dos venenos, anzóis e armadilhas pequenas
colocadas nos riachos.
Os Enawenê Nawê não comem carne e, portanto, não caçam. Muito
raramente e cercados por uma série de restrições, comem algumas aves
como mutum, macuco e jacamim, caçadas na maioria das vezes por
armadilhas colocadas no mato.
A coleta e os objetos
Os produtos de coleta complementam a alimentação e são também matérias
primas para enfeites, roupas e objetos em geral. O produto de coleta
mais importante é o mel que misturado com água, é consumido na forma
de refresco. Dentre os frutos destacam-se a castanha, o buriti, a
bacaba, o pequi. Além disso os Enawenê Nawê comem fungos (cogumelos
selvagens), raízes, alguns tipos de insetos e de larvas. Cascas,
raízes, folhas especiais são utilizadas como remédio.Produzem sal
vegetal de palmeiras e panelas de barro de vários formatos e tamanhos,
tanto para cozinhar quanto para servirem de pratos. Da palha do
buriti, após tratamento adequado, confecionam cordas , cobrem as
casas, cestos, peneiras, raquetes para assar peixes , saias e enfeites
de braços que os homens usam nos rituais. O buriti é uma planta muito
importante para a cultura Enawenê Nawê. De madeiras especiais os
índios fazem canoas, bancos, remos, bordunas arcos, flechas, ralos,
fogo. Cipós são usados como cordas fortes, coletam resina para fogo e
latéx para bolas e enfeites de perna das mulheres.
Além das fibras, os Enawenê fabricam redes, saias e pulseiras de
algodão que cultivam. Pintam de vermelho as saias e o corpo com
urucum. Em ocasiões especiais também usam a pintura preta de jenipapo,
fruto de uma árvore. Estão sempre com os cabelos bem cortados, com
franja, sulco raspado por cima da orelha e compridos atrás. Dentes de
animais, frutos vegetais e penas de pássaros, em especial arara
vermelha, papagaios, mutum e gavião complementam os colares e cocares.
Os Enawenê Nawê criam araras e papagaios dos quais tiram penas para os
colares. Não é preciso matar os animais. Fazem inclusive um tipo de
tratamento nas penas do rabo dos papagaios com uma secreção extraída
das pererecas que transformam algumas penas verdes em amarelo ouro.
As mulheres têm duas meia luas tatuadas nas laterais do umbigo, usam
saias vermelhas de algodão e urucu, colares pretos de tucum na cintura
e brincos de conchas nas orelhas. Os homens usam estojo peniano. É uma
palha enrolada feita de fibra de buriti que serve para amarrar o
pênis. É muito vergonhoso andar sem essa palhinha, é como andar nu.
Essa palhinha é colocada quando os meninos estão entrando na
adolescência. A partir daí aquela vida folgada de brincadeiras começa
a mudar, os meninos começam a ter maiores responsabilidades de
trabalho e a se preparar para casar.
Para realizarem seus rituais, os Enawenê Nawê dispõem de uma grande
variedade de tabocas, cabaças de diferentes tipos e tamanhos, das
quais são feitas flautas e chocalhos. Cada grupo ritual toca um
instrumento diferente e o som produzido na pátio da aldeia, quando da
realização do ritual Yãkwa, é o de uma verdadeira orquestra. Cada
instrumento está relacionado a um grupo ritual, o qual, por sua vez, a
um grupo de espíritos.
Os rituais
Os rituais Enawenê Nawê estão relacionados a duas categorias de
espíritos: os Enore, espíritos do céu, e os Yakairiti, espíritos que
vivem embaixo da terra, morros e lugares inóspitos de um modo geral.
Aos Enore estão relacionados os rituais Salumã e Kateokõ (ritual das
mulheres). Aos Yakairiti estão relacionados os rituais Yãkwa e Lerohi.
Quando os Enawenê Nawê estão doentes ou quando há qualquer outro tipo
de problema, consideram que a responsabilidade é dos espíritos
Yakairiti que estão insatisfeitos com alguma coisa, ameaçando levá-los
ao outro mundo. No ritual Yãkwa faz-se uma troca generalizada (homens
e espíritos) através dos grupos rituais, entre todos os habitantes da
aldeia. Tudo visando a cumprir os ensinamentos e satisfazer os
Yakairiti, de forma a, de um lado, não dar motivos para que esses
espíritos ameacem a vida da aldeia e, de outro, manter a harmonia do
mundo.
Ao longo de todo o ano, os Enawenê Nawê realizam vários rituais: de
janeiro a julho, o Yãkwa; de julho a setembro, o Lerohi; em outubro, o
Salumã; e em novembro e dezembro, o Kateokõ, sendo este último
realizado ano sim, ano não. O Yãkwa é o mais longo e mais importante
dos rituais realizados pelos Enawenê Nawê. Realizado anualmente,
durante os meses de janeiro a julho, tem seu início com a colheita do
milho novo e termina com o plantio da roça coletiva de mandioca. Os
grupos rituais, atualmente nove, são organizados de acordo com a linha
paterna. Cada grupo ritual está relacionado a um grupo específico de
espíritos Yakairiti. Os Enawenê Nawê acreditam que esses espíritos
estão também organizados em grupos e habitam um território próprio
(espaço físico propriamente dito), dentro do território tradicional. O
nome genérico dos grupos rituais é Yãkwa, que são na verdade os clãs
segundo os quais os Enawenê Nawê se organizam. Eles são, então,
Ataina, Kawairi, Walitere, Toairinere, e outros, nomes de grupos de
origem que, vindos em tempos míticos de pontos distantes do território
(cabeceiras dos rios), juntaram-se formaram os Enawenê Nawê. Cada
grupo ritual (Yãkwa/Yakairiti) está relacionado a um conjunto
específico de instrumentos musicais.
Para realizar o Yãkwa, isto é, a reunião dos clãs em que cada qual
reverencia seu grupo de espíritos Yakairiti, os grupos se dividem
entre os Harikare e os Yãkwa. Os Harikare são os responsáveis pela
organização do ritual, isto é, cuidam da lenha, acendem os fogos,
oferecem as comidas, enquanto que os demais (os Yãkwa) cantam e dançam
no pátio. Por um período de dois anos, um dos grupos rituais é o grupo
de Harikare principal, responsável pela roça, pela fabricação do sal
vegetal e pela organização do ritual. Esse grupo não participa da
pesca coletiva de barragem. Após a chegada dos homens que foram para
as barragens, esse grupo permanece enquanto Harikare por um período
aproximado de 15 dias. São os espíritos Yakairiti dos Harikare que
estão presentes no pátio. É necessário, portanto, que todos os grupos
de Yãkwa se revezem no papel de Harikare, para que todos os grupos de
espíritos Yakairiti sejam satisfeitos. Esse revezamento acontece ao
longo dos vários meses de ritual, quando variam os cantos e
coreografias.
Na primeira parte do ritual, no mês de janeiro, entre os trabalhadores
de construção de canoas, armadilhas e colheita de mandioca, os índios
realizam as primeiras oferendas de alimentos, cantos e danças aos
espíritos Yakairiti. Também preparam o primeiro sal vegetal, elemento
fundamental de troca com esses mesmos espíritos para a obtenção dos
peixes que se constituirão em uma das bases alimentares de todo o
período ritual.
Na segunda parte, os homens partem para os rios menores, aonde irão
construir uma ou mais barragens de pesca. Após volta dos pescadores
para a aldeia acontece o auge do ritual na aldeia, que dura quatro
meses, durante o qual ocorrem trocas generalizadas de alimentos,
cantos e danças. Finalmente, os índios fabricam máscaras que
representam os espíritos ligados aos trabalhos de plantio da roça
coletiva de mandioca
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